Assis Horta
um fotógrafo popular

O retratista que registrou o trabalhador brasileiro, suas famílias e seus amigos, em dignas fotografias de estúdio, entre as décadas de 1930/1950.

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Assis Horta um fotógrafo popular - Livro

Assis Horta

As fotografias de trabalhadores causam impacto até hoje, tanto por revelar a realidade de um passado que poucos conheciam, como por mostrar aquela gente esperançosa em imagens fortes e belas.

Horta foi o responsável pelo levantamento fotográfico do sítio histórico tombado pelo SPHAN em 1938. Mais tarde, em 1999, uma parte dessa área, recebeu o título de Patrimônio Mundial pela Unesco. Essas fotografias do período dos levantamentos fotográficos para a delimitação da área a ser preservada pelo SPHAN levaram, em 2008, a exposição retrospectiva Diamantina 360º – Sob o olhar de Assis Horta, que comemorou os 70 anos da política de preservação patrimonial no Brasil – período de construção e consolidação da política estatal de proteção do patrimônio nacional –, iniciado em 1938.

Esse evento foi o estopim para a divulgação do trabalho do fotógrafo, até então desconhecido do público em geral. A partir de 2013, com a exposição Assis Horta: a democratização do retrato fotográfico através da CLT, realizada primeiramente no SESI, de Ouro Preto (MG) e, depois reeditada em Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, Horta passou a ser conhecido nacionalmente, principalmente por seus retratos 3x4 e pelos retratos de operários feitos em estúdio. No entanto, essas exposições enfatizavam principalmente o perfil documental da obra de Assis. Era, no entanto, necessário abordar a apreciação da obra do fotógrafo para além da sua importância documental, ressaltando o seu lado social e evidenciando a qualidade estética das suas fotografias. Este livro pretendeu cumprir, despretensiosamente, essa missão.

As fotografias de operários em estúdio tiveram correspondência direta com os retratos 3x4 e foram motivadas, primeiramente, pela necessidade da foto nos títulos de eleitores, ainda nos anos finais de 1930 e, depois, potencializada pela promulgação da lei da CLT, em 1943. Assim, sentindo-se valorizados pelas políticas públicas, os trabalhadores passaram a sonhar com a possibilidade de uma vida mais digna como a dos brasileiros da classe média, que figuravam em pomposas fotografias expostas na sala de espera do Photo Assis. Parece bastante natural que, entusiasmados pelas novas perspectivas e otimistas quanto ao futuro, os negros e mestiços de Diamantina, tenham se animado a gastar uma parte do salário, agora um pouco mais garantido, em uma dignificante e honrada foto de estúdio.

As imagens de negros e mestiços, retratados em um estúdio nos moldes dos tradicionais carte de visite oitocentistas, evidenciam um novo olhar sobre uma camada da população pouco representada no Brasil até aquele momento. Sob as lentes do fotógrafo, cujo olhar foi educado tanto pelos cânones herdados da fotografia de estúdio do século XIX, quanto pelas regras do SPHAN, trabalhadores e suas famílias foram eternizados de maneira digna e caprichada no Photo Assis.

As fotografias de trabalhadores causam impacto até hoje, tanto por revelar a realidade de um passado que poucos conheciam, como por mostrar aquela gente esperançosa em imagens fortes e belas. Mais de setenta anos após sua realização, os retratos ainda surpreendem por serem inusitados. Em uma sociedade cada vez mais sectária e individualista, em que direitos trabalhistas estão sendo questionados e divisões de classe reforçadas, ainda causa espanto em algumas pessoas ver trabalhadores negros e mestiços serem transportados para um ambiente considerado de elite, em fotografias com tamanha dignidade e beleza.

O Livro

Destaca-se, no conjunto da obra, os muitos retratos do povo diamantinense e da região, os quais, funcionais ou não, revelam a grandeza e a dignidade humana de pessoas que, até se virem retratadas, não sabiam possuí-las.

Este livro apresenta ao público brasileiro a bela fotografia de Assis Alves Horta, ou simplesmente Assis Horta. Nascido em Diamantina em 1918, o fotógrafo teve uma longa vida, tendo falecido em 2018. Ao longo de seus cem anos, fotografou arquitetura, vistas da cidade, paisagens, festas religiosas e civis, e retratos de diferentes tipos: 3x4, “anjinhos” (retratos de crianças mortas), retratos de família e individuais. Por meio de rara sensibilidade e olhar acurado, Cleber Soares revela ao público brasileiro um patrimônio fotográfico ignorado por muito tempo e ainda, infelizmente, com circulação restrita.

Embora homem simples, de pouca instrução formal, Assis Horta se relacionou com vasto leque de intelectuais brasileiros, especialmente os modernistas. Rodrigo Mello Franco de Andrade, de quem se tornou amigo da vida toda, o descobriu em Diamantina ainda bem jovem, apresentando-lhe não apenas recursos fotográficos mais sofisticados do que a modesta câmera de que dispunha, mas o universo teórico e ideológico do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Ali na sede do Patrimônio, entre Diamantina e Rio de Janeiro, Assis Horta conviveu com Sylvio de Vasconcelos, Judith Martins, Lucio Costa, Curt Lange e muitos outros. O fotógrafo foi também uma espécie de cicerone oficial de Diamantina do SPHAN, apresentando a cidade a pesquisadores e artistas como os cineastas Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Santos e Schubert Magalhães, e o pintor Alberto da Veiga Guignard. No SPHAN, em contato direto com o nosso passado artístico colonial, educou seu olhar, o que certamente afetou sua percepção sobre os filhos da terra (Diamantina), herdeiros diretos daquele passado e trabalhadores e trabalhadoras que iria fotografar com tanto respeito.

O volume de fotografias de Assis Horta é significativo. Trabalhador incansável, fotografou muito, mas não o fez, me parece, somente porque precisava sustentar a família. Observando sua obra, logo percebemos que a necessidade financeira não era sua única motivação. As fotos revelam um olhar atento, capaz de captar beleza nas coisas simples e aparentemente banais da vida cotidiana. Destaca-se, no conjunto da obra, os muitos retratos do povo diamantinense e da região, os quais, funcionais ou não, revelam a grandeza e a dignidade humana de pessoas que, até se virem retratadas, não sabiam possuí-las. Uma boa parte destas pessoas são trabalhadores descendentes de escravos que pouco ou mesmo nenhum respeito cívico haviam conquistado desde a libertação de seus avós e bisavós.

Drª Raquel Quinet de Andrade Pifano

Professora no Instituto de Arte e Design (IAD-UFRJ) e no Programa de Pós-Graduação em Arte, Cultura e Linguagens (PPG ACL-UFJF)

 

Montagem com 6 retratos 3x4.

Diamantina, 1943. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Casal.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Casal.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Amigos.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Professor de ginástica.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Rabo-mole (figura popular).

Diamantina, c. década de 1950. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Operário.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Operário.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Operária.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Operária (3x4).

Diamantina, 1943. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Filhos de operários.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Família de operário.

Diamantina, c. década de 1940. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Soldado.

Diamantina, c. década de 1930. Acervo Assis Horta / Belo Horizonte (MG)

Audiolivro

Ouça aqui ou faça o download da gravação do conteúdo do livro Assis Horta: um fotógrafo popular (GRÁTIS).

Locução e gravação: Fabrício Conde Alves

O acaso fez com que Assis Horta conhecesse o intelectual Rodrigo M. F. de Andrade, em 1937. O resultado desse encontro são as primeiras fotografias de Diamantina para o IPHAN que, mais tarde, levariam ao tombamento e ao reconhecimento da cidade como Patrimônio da Humanidade. O encontro marca também o começo de uma grande amizade.

Os fotógrafos da fase inicial do Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (SPHAN), especialmente os pioneiros Assis Horta e Eric Hess, podem ter inspirado as primeiras regras, feitas por Rodrigo M. F. de Andrade e Lucio Costa, para nortear o trabalho dos “fotógrafos do Patrimônio”.

Os registros fotográficos de bens imóveis, objetos e obras de arte, feitos por Horta em Diamantina e região, podem ter servido como alicerce para o desenvolvimento do método de trabalho de fotógrafos para o SPHAN. Nos esforços para a preservação e o tombamento do acervo arquitetônico de Diamantina, feito por intelectuais, técnicos e fotógrafos, podemos comprovar como esses procedimentos ocorreram.

Os intelectuais modernistas do SPHAN não pouparam esforços para a construção do mito Aleijadinho e, a partir do barroco mineiro, empenharam-se na valorização de uma cultura genuinamente brasileira. O enaltecimento do mestiço como herói nacional tinha a intenção de diferenciar e valorizar a arte original feita no Brasil da arte oficial, elitista e devedora da cultura colonizadora europeia.

Apesar das regras do SPHAN para educar o “olhar” que tentavam garantir que fotografias fossem as mais técnicas possíveis, os fotógrafos transgrediam algumas recomendações para desenvolver seus trabalhos autorais. Em trabalhos extras para reforçar o orçamento ou aproveitando o tempo ocioso, os fotógrafos se sentiam livres para fotografar sem as amarras técnicas e com muito mais subjetividade.

Assis Horta foi muito ligado às tradições de Diamantina e à história de seu povo. O jovem Assis abandonou a escola nos primeiros anos e foi trabalhar como assistente de fotógrafo. Por isso passou o resto da vida compensando em leituras, filmes e em tudo que lhe caísse nas mãos, o que não aprendeu no ensino formal. Inteligente, desenvolto e muito trabalhador, conseguiu ser bem-sucedido na vida e em sua fotografia.

O amigável e entusiasmado Assis Horta esteve sempre vinculado a causas individuais e coletivas. Horta foi um pai de família amoroso, funcionário exemplar e católico fervoroso. Diamantina e sua gente sempre foram sua grande inspiração e forjaram a personalidade do fotógrafo, e consequentemente, sua fotografia.

Apesar de não ter sido sua única fonte de aprendizado, certamente, foi no trabalho do elegante Chichico Alkmim, que Horta teve os primeiros contatos com a tradição dos cartes de visite que fizeram sucesso entre a elite na segunda metade do século XIX. A fotografia social de negros feita por Alkmim – depois dos retratos feitos por Militão –, são, juntamente com as fotos de operários realizadas no Photo Assis, os poucos registros desse tipo de imagem preservados no Brasil.

A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943, além de garantir direitos aos trabalhadores, exigiu uma foto 3x4 na carteira de trabalho. A popularização da fotografia, após esse primeiro contato, motivou novas visitas desses tímidos clientes ao estúdio fotográfico de Assis Horta. Mas antes disso, muito já tinha sido feito para que os trabalhadores pudessem ter seus direitos garantidos. O retrato fotográfico, por sua vez, também serviu de ferramenta para identificação e, em muitos casos, para o controle das pessoas dos estratos menos favorecidos da sociedade.

No Photo Assis, os clientes tinham opções de poses e de acessórios para compor seus retratos. Operários, em sua maioria afrodescendentes, podiam ser fotografados com suas famílias e amigos, com a mesma dignidade com que a elite já estava acostumada a ser representada. Em retratos de forte inspiração oitocentista, e também com escolhas que remetem às fotografias de celebridades em revistas semanais, Horta evidenciava negros e mestiços em belas imagens carregadas de sensibilidade e dignidade.

A fotografia de negros no Brasil começou de maneira preconceituosa e cruel para satisfazer a curiosidade dos europeus em relação a uma terra exótica e desconhecida. Das fotografias de typos, passando por fotos souvenirs mais elaboradas de escravas, feitas até mesmo pelo famoso Marc Ferrez, até chegar aos retratos de amas e babás fotografadas nos anos finais do século XIX, negros e mestiços foram ganhando espaço na fotografia até serem eternizados como verdadeiros cidadãos por Militão Augusto de Azevedo, em São Paulo.

Entre as décadas de 1940 e 1950, negros e mestiços pobres foram fotografados com dignidade no Photo Assis. Os raros e bem preservados negativos em vidro documentam, de forma sensível em dignos retratos, o rosto do trabalhador diamantinense daquele período. É possível perceber nessas fotografias, os cânones do retrato burguês oitocentista, mesclados à referências modernistas e à outras fontes de inspiração do fotógrafo como o cinema e as revistas semanais.

Após o lançamento da publicação Cadernos de Pesquisa e Documentação do IPHAN, em 2008, o fotógrafo Assis Horta teve seu nome e, principalmente suas fotografias, reconhecidos em exposições pelo país. Considerado um dos grandes nomes entre os fotógrafos do IPHAN, o velho fotógrafo mineiro pode acompanhar o resgate do seu trabalho e receber, em vida, os elogios que suas belas imagens merecem.